17 de março de 2017

Pincéis, tintas, palavras, algo mais e afeto: entrevista com Alice Vinagre

Por Clênio Sierra de Alcântara



Foto: divulgação

O trato com o fazer artístico é, acredito, um dos modos que certos homens e mulheres desenvolveram não somente como instrumento de afirmação do eu enquanto fonte criadora e questionadora da realidade e da própria condição de existir, mas também – e, talvez, principalmente – como uma necessidade premente e vital de corporificar e de alguma maneira materializar tudo aquilo que reside na angústia, no sofrimento, na alegria, na incerteza e na sofreguidão, que não cabe e que não encontra ponto de encaixe nos repetitivos afazeres do cotidiano. De certa forma a criação artística – é assim que eu a percebo – fundamenta-se na necessidade de rebelar-se contra esse estado de coisas ou, dito de outro modo, contra a inserção compulsória de cada indivíduo numa fração de uma dada realidade. Se, como disse o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar, “a arte existe porque a vida não basta”, podemos, em vista disso, inferir que o fazer artístico é, ao fim e ao cabo, uma expansão da esfera da existência.

Paraibana de João Pessoa, onde nasceu em 1950, Alice de Faria Vinagre começou a despontar no cenário artístico nacional na década de 1980, período no qual cursou pintura na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. Sua produção é muito marcada por uma pintura em que o desenho, a colagem, as palavras e mesmos símbolos gráficos constituem um amálgama plástico bastante expressivo que nos proporciona uma rica experiência visual – recorrendo novamente a Ferreira Gullar e quase parafraseando àquela sua fala, eu diria que, no caso de Alice Vinagre, quando tintas e pincéis não bastam e não conseguem dar conta do que ela quer expressar, entram em cena papel, tecido e tudo o mais que estiver à mão e que se seja possível aproveitar.

No estudo A vertigem da maneira: pintura e vanguarda nos anos 80 (Rio de Janeiro: Diadorim: UERJ, 1993, p. 74), Jorge Lúcio de Campos nos diz que – e vale esclarecer que ele não examinou artistas brasileiros, e, sim, nomes como o italiano Carlo Maria Mariani e o norte-americano Julian Schnabel – a prática pictórica oitentista foi marcada por um “implacável sentimento de incapacidade” de se situar no tempo-espaço “que a compeliu tanto em direção a uma tendência alegórico-revisionista quanto a uma postura assumidamente metalinguística”. Examinando alguns dos trabalhos recentemente reunidos por Alice Vinagre a mim me pareceu que a sua pintura-miscelânea – não encontrei termo mais apropriado para denominá-la – em certa medida contempla essas duas vertentes ou essas duas direções apontadas por Jorge Lúcio de Campos. Percebe-se  claramente no fluxo pictórico alicevinagreano arroubos alegóricos – não necessariamente revisionistas – em par com um esforço de trazer o espectador para a frente de peças fazendo uso em algum momento da metalinguagem: por que pintar um vestido cujo tecido já recebera uma coloração ainda na tecelagem? Por que o corpo de uma espécie de Eva pintado de marrom aparece envolvido por várias serpentes e por palavras? Não será porque o vestido deixou, na verdade, de ser vestido e passou agora a ter outro significado ao receber nova cor e ser fixado ali? E quanto a Eva, será que as palavras que a acompanham não seriam um contraponto ou uma reescrita do julgamento bíblico que determinou a sua expulsão do Éden, não seria como que um pedido de desculpas ou de perdão? Será que a pintura associada à colagem não é um questionamento metalinguístico à arte de pintar? Ou será  que decididamente eu me equivoquei ao enxergar metalinguagem nesta exegese, quando, na verdade, o que quer a talentosa Alice é tão somente propor uma fantasia de recriação e/ou reescrita do mundo?



Fotos: do autor

Alice Vinagre parece destinada a elaborar a construção de um universo imagético muito voltado não somente para as inquietações do seu ser, mas também para inquietações coletivas que dizem, claro, do eu feminino – a presença do feminino, aliás, é a chama potencialmente acesa da sua mais recente exposição “Assim, assim vinagre...”, que reúne obras de vários anos (e foi uma pena que as obras não estivessem devidamente identificadas) na qual, além de uma Eva redentora e de uma Ofélia shakespereana, aparecem outras marcas do gênero -, que lhe constitui e define, bem como de instâncias outras de sua realidade total – a real e a imaginada e/ou idealizada.





Na noite do último dia 10 de novembro eu me dirigi até a Galeria de Arte Archidy Picado, na capital paraibana, a fim de tomar parte, com muito entusiasmo, no vernissage da exposição “Assim, assim vinagre...”, aproveitando o ensejo para trocar figurinhas com a renomada artista.



Alice, num mundo altamente tecnológico no qual as pessoas constantemente confundem e/ou esquecem do real e ficam imersas no ambiente virtual, qual o papel da arte ou da criação artística numa sociedade como essa?

Olha, eu acho assim. Não sei bem qual é o papel da arte, mas a arte sempre reflete o seu tempo. É como se fosse um espelho. Então, muitas vezes reflete de forma, digamos assim, mecânica; e muitas vezes vai refletir e espelhar não no sentido de espelho, mas de forma reflexiva. Aí eu acho que depende, sabe? Não sei bem essa coisa do digital, do natural. É como se fossem âmbitos, digamos assim, do ser humano; que esse virtual talvez não seja uma coisa tão longe do natural, certo? Em algum aspecto é como se o virtual, não sei se você concorda comigo, de certa maneira fizesse parte da natureza. Na hora em que, por exemplo, algumas tribos indígenas convivem com essa parte, digamos assim, virtual, de uma outra forma...

Você quer dizer ligada ao sobrenatural?

Ao sobrenatural. E trabalhando aquele sobrenatural de uma forma real, que é real para elas, não é sobrenatural, é natural.

Seria assim um realismo mágico?

Por aí, por aí, por aí.

Você acredita que a sua arte consegue dialogar com essa realidade atual ou ela é o registro de uma época que já passou?

Sinceramente eu não sei dizer. Eu sei que sou contemporânea da minha época. Eu uso de recursos, digamos assim; porque muitas vezes a pessoa usa um recurso tecnológico e de certa maneira está sendo mais conservadora do que alguém que usa, digamos, um meio tradicional – a pintura, a escultura, a argila – e, de certa forma, está sendo mais contemporânea. E a própria contemporaneidade, digamos assim, contempla todos os tipos de mídia. Então, na verdade, é como se hoje independesse do meio que você usa. Eu acho que faz parte.

Como você enxerga a ligação de sua arte com o público que vai às galerias e aos museus para apreciá-la? Você acredita que existe uma interação imediata da obra com o espectador?

Olha, às vezes sim e outras vezes não. Às vezes chegam pessoas assim que me relatam, dependendo do trabalho que eu tenha apresentado: “Poxa, fui tomada. Fiquei muito feliz de ver isso, de estar assim”. É claro que isso gratifica muito, né? E como tem pessoas que - eu acho que esse não bateu nada – não chegam pra mim pra falar nada, entendeu? Mas, assim, muitas vezes toca. Algumas instalações que têm uma questão imersa e alguns trabalhos meus que eu às vezes nem imagino que a pessoa vai ter aquela reação e a pessoa é afetada por aquele trabalho, por aquela imagem, sabe? Isso é bem gratificante. Numa época em que tudo é muito rápido, muito dado, a informação é veloz... Então, de repente, qualquer trabalho, acho que de arte, de modo geral – qualquer trabalho talvez seja um exagero -, mas uma boa parte você tem que se dar um tempo.

Alice há quem pense que reina na sociedade brasileira certo distanciamento, na verdade, um grande distanciamento da maior parte da população dos espaços onde algumas modalidades da arte – como a arte conceitual, por exemplo – se encontram, porque as pessoas não compreendem as obras. Será que isso é falta de familiaridade com essas manifestações artísticas?

Eu acho que é. É falta do próprio público e dos meios públicos que, digamos assim, estão expondo, dispondo. Levar, trazer uma certa intimidade para as pessoas, falar a linguagem delas, de certa forma, porque muitas vezes não é uma coisa tão complicada. É um conceito, mas aquele conceito é uma ideia. E, muitas vezes, o que acontece é que, como fica fechado em ambientes em que a pessoa vai ter que ter um acesso, chegar, entrar, ver, isso impede esse convívio. Porque muitas vezes na arquitetura – um exemplo mais simples -, algumas coisas assim arrojadas, contemporâneas, como a pessoa passa ou de ônibus ou a pé, ela termina que convive com aquilo e não acha estanho, não acha chocante. “Ah, que interessante!”, porque está vendo...

É familiar, não é Alice?

Familiar, exatamente. Enquanto que às vezes o fato da galeria, do museu muitas vezes tem isso, como você falou, de afastar, de ter, até a pessoa chegar ali, de passar por determinados cantos; tem pessoas que ficam inibidas, achando que vão achar pessoas esnobes...

Que não são dignas de estar naquele ambiente.

Isso, exatamente; e não tem nada a ver, né?

Qual o sentimento que lhe chega nesse momento em que voe está abrindo uma exposição que acontece longe do eixo Rio-São Paulo?

Eu me sinto feliz, porque, veja só, eu sou muito movida a afeto, sabe?  Eu sou daqui de João Pessoa. Moro no Recife, mas sou daqui. As pessoas que me convidaram para expor aqui na galeria são pessoas assim que eu respeito e também tenho muito carinho. A própria galeria é um espaço – como é que eu diria? – generoso, bonito. Então, esse espaço por si só já é gratificante, independente de ser aqui ou em São Paulo ou em outro local.

Alice eu lhe fiz essa pergunta porque ainda vemos que há artistas que pensam que para acontecer têm que estar no eixo Rio-São Paulo.

Hãhã.

Para concluir este nosso encontro me responda: a arte redime o artista?

Olhe, veja bem. Eu acho (rindo). Eu não sei se redime, mas de certa forma salva. Porque muitas vezes é uma forma de você se estruturar; não que você faça: “Eita, vou me estruturar”. Mas são tantas, digamos assim, demandas, pulsões internas, necessidades externas também que tocam, que afetam que você precisa fazer arte para poder sobreviver. Creio que é por aí.

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