23 de março de 2024

A resistência do analfabetismo

 Por Sierra


Imagem: Internet
Educação não é assunto para depois; é assunto para agora, porque educar leva tempo. Enquanto a educação não for a prioridade das prioridades neste país, continuaremos amargando a triste realidade de uma elevada taxa de evasão escolar de mãos dadas com um contingente absurdo de analfabetos

Pode algum dirigente de uma nação afirmar que está empenhado em promover a conquista da cidadania de cada um dos habitantes do país sem que a tais indivíduos seja facultado o acesso à escola, a uma escola que seja realmente capaz de alfabetizá-lo?

Foi essa pergunta que eu me fiz ontem quando li uma matéria num portal de notícias que dava publicidade a dados sobre o panorama educacional brasileiro divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)  na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) 2023. De acordo com tais dados, o Brasil possui ainda espantosos 9 milhões e 300 mil pessoas com 15 anos ou mais de idade que não sabem ler ou escrever.

É claro que uma situação vergonhosa como essa não é fruto do acaso. Quem ler, por exemplo, duas obras básicas sobre o histórico do estabelecimento do ensino neste país, que são História da educação, do Paulo Ghiraldelli Jr. (2ª ed. São Paulo: Editora Cortez, 1994) e Grandezas e misérias do ensino no Brasil, da Maria José Garcia Werebe (4ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, s. d.) fica estarrecido diante da construção de todo um aparato institucionalizado pelo Estado que resultou na vigência, durante décadas, de um cenário escolar que era quase que totalmente vedado àqueles que não fossem filhos de famílias economicamente privilegiadas, ou seja, a maior parte da população. De modo que tais limitações e dificuldades de acesso à educação formal geraram um contingente muito expressivo de analfabetos e também dos chamados analfabetos funcionais, que são aqueles indivíduos que, embora tenham aprendido a ler e a escrever, não desenvolveram a contento tais competências, o que faz com que eles não consigam redigir um texto simples sem cometer falhas graves e nem compreender de todo narrativas igualmente simples.

Não é preciso ser um especialista em Pedagogia e nem conhecedor das obras dos teóricos da Educação para sabermos quão impactante é para a sociedade abrigar em seu seio um número elevado de analfabetos; impacto esse que, particularmente, afeta sobremaneira a vida da pessoa que não sabe ler nem escrever. As desigualdades socioeconômicas que marcam a realidade, ou melhor, as realidades dos quatro cantos deste país são um dos reflexos da histórica precariedade do sistema público de ensino e mesmo da ausência dele. Indivíduos com pouca ou nenhuma formação escolar tendem a conseguir subempregos e até ser vítimas do que legalmente é denominado de "trabalho análogo à escravidão". E uma mão de obra portadora de formação escolar deficiente e/ou desprovida dela tende a ser pouco produtiva porque não sabe ler um manual, uma receita, um aviso, etc., e, em consequência disso, fica com os seus conhecimentos limitados.

Em sua obra aqui citada, Maria José Garcia Werebe afirmou que "Não se pode pretender realizar a prosperidade de uma nação apenas com uma elite instruída, ao lado de uma população analfabeta" (Op. cit., p. 234). E uma boa formação escolar, salientou a autora, está direta e fundamentalmente ligada à educação basilar que deve "oferecer um mínimo de cultura básica a todos os brasileiros".

É fato amplamente sabido por aqueles que se interessam por assuntos ligados à educação que, no Brasil, há muitos anos, é bastante elevado o índice de evasão escolar. E as explicações que os especialistas dão para isso são as mais diversas: práticas de ensino pouco atraentes e/ou desconectadas com a realidade cotidiana dos estudantes; falta de recursos financeiros dos familiares dos alunos para conseguir mantê-los  frequentando as escolas; o imediatismo dos jovens que pensam que tudo poderia ser mais breve e fácil de ser alcançado e não durar anos a fio, como a vida escolar; a necessidade que muitos desses jovens têm de arranjar logo um emprego para ajudar nas despesas da casa; etc.

Numa realidade cada vez mais cheia de aparatos tecnológicos que exigem de nós inúmeras competências atreladas ao saber ler, o drama desses 9 milhões e 300 mil analfabetos que o Brasil abriga só tende a aumentar. Drama esse que inclui, principalmente, ficar de fora do aproveitamento de tais tecnologias e, por conseguinte, na dependência de quem os guie pelos labirintos dessas mudanças.

Recordando mestre Paulo Freire, um educador que vem sendo tão atacado por uma gente que se apresenta, como não poderia deixar de ser, como conservadora e opressora, educar deve ser para a prática da liberdade e da autonomia: "A educação deve ser desinibidora e não restritiva. É necessário darmos oportunidades para que os educandos sejam eles mesmos. Caso contrário domesticamos, o que significa a negação da educação" (Paulo Freire. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 32)..

A resistência e a persistência de um grande contingente de analfabetos neste país deveria envergonhar toda a sociedade e não somente os governantes. Mas, infelizmente, não é isso o que ocorre. Quantas pessoas será que leram e/ou de alguma outra forma tomaram conhecimento da divulgação dos dados sobre analfabetismo feita pelo IBGE? Em matéria de educação nós continuamos mantendo o comportamento de um aluno que acredita que o que o professor está querendo lhe ensinar não vai servir para a vida dele, e, por isso, ele não o leva a sério como deveria, o que é um comportamento de quem parece não compreender que a educação escolar é um veículo de promoção de transformação social.

Educação não é assunto para depois; é assunto para agora, porque educar leva tempo. Enquanto a educação não for a prioridade das prioridades neste país, continuaremos amargando a triste realidade de uma elevada taxa de evasão escolar de mãos dadas com um contingente absurdo de analfabetos.

16 de março de 2024

A verdade é verde-oliva

 Por Sierra


Imagem: Internet
Como era de se prever, Jair Bolsonaro e os seus comparsas golpistas estão desmerecendo, desqualificando e fazendo de conta que não se importaram com os depoimentos dos generais Carlos Baptista Junior e Freire Gomes. Eles  estão negando o poder devastador das declarações dos generais porque é do jogo defensivo negar. Mas os elementos comprobatórios da trama golpista estão todos de posse da Polícia Federal e do STF: vídeos e relatos de reuniões, minuta do golpe, depoimentos confirmatórios...


Durante os longos e infernais quatro anos que durou o desgoverno de Jair Bolsonaro, os que tinham olhos para ver e ouvidos para ouvir acompanharam o desenrolar de um espetáculo grotesco e macabro protagonizado pelo então presidente da República e por seus cúmplices e comparsas. Os quadros encenados eram um misto de selvageria, brutalidade, absurdo e non sense em meio à ocorrência de uma pandemia  - a da covid-19 - altamente letal.

Encarnando a figura de um pretenso "salvador da pátria", Jair Bolsonaro montou um esquema eficiente de convencimento para a sua plateia que era integrado por várias milícias. Quais sejam? Uma milícia digital comandada por um denominado Gabinete do Ódio, que se ocupava  em destruir reputações daqueles que eles tinham como inimigos e em espalhar, diariamente, pelas redes sociais, a maior quantidade possível de notícias sabidamente falsas, porque qualquer mínima checagem do que era divulgado constatava a inveracidade dos "fatos". Uma milícia governamental amparada por um amplo aparelhamento do Estado com uma multidão de indivíduos ocupando muitos cargos da administração pública que não se furtavam a colaborar com os acertos necessários para liquidar toda e qualquer possibilidade de Jair Bolsonaro perder o pleito seguinte e, assim, se manter no poder por mais quatro anos ou até mais, porque era superevidente que esses espécimes não queriam de forma alguma ser apeados do poder. Uma milícia dita cristã que contava com alguns padres malignos, mas que era formada, principalmente, por pastores evangélicos mal-intencionados e pilantras que posavam de líderes espirituais cuidando não de seus rebanhos e sim dos próprios próprios bolsos e interesses particulares, enriquecendo e vivendo no bem bom à custa de dizimistas e de negócios escusos, como a "oferta" de apoio a uns e outros políticos; apoio esse que significava  manipular e fazer a cabeça dos fiéis recorrendo a toda sorte de mentiras e falsidades para que eles votassem em determinados candidatos e ao mesmo tempo tratassem de demonizar outros. Uma milícia empresarial constituída basicamente por proprietários de grandes estabelecimentos comerciais e por agropecuários interessados em políticas governamentais trabalhistas que beneficiam os patrões em detrimento da situação dos empregados e, também, sequiosos de instituição de leis ambientais frouxas e altamente permissivas de desmatamentos e de exploração de terras de tudo que é jeito, leis essas do tipo "deixar a boiada passar", que não têm nem preocupação e nem cuidado para com a preservação do meio ambiente; empresários esses que se puseram a financiar atos antidemocráticos.. E por uma milícia militar, tida como garantidora e legitimadora de tudo o quanto Jair Bolsonaro desejasse fazer e acontecer; e que era constituída por membros de todas as denominadas Forças de Segurança: municipais, estaduais e federais sob o comando, digamos assim, das Forças Armadas, em geral, e do Exército, em particular.

O aparato miliciano a dar apoio ao desgoverno de Jair Bolsonaro era enorme e bem capilarizado. E tal aparato deixava o tempo todo ver que era e estava disposto a tudo, a tudo mesmo, até a matar, como vimos na série de ameaças a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e ao então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, nas agressões físicas a jornalistas, na implantação de uma bomba num aeroporto e no assassinato de um apoiador do candidato do Partido dos Trabalhadores no Paraná.

Com o fito claro de angariar o maior apoio possível de membros das Forças Armadas, Jair Bolsonaro instalou milhares de militares em ministérios e em dezenas de órgãos do desgoverno. E fez mais, muito mais pelos militares de alta patente: aumentou os salários deles;  e destinou muitas verbas para os quartéis. O desgoverno militarizado era a face fardada de um sujeito oriundo da caserna que sempre exaltou torturadores e que é saudoso da Ditadura Militar.

Pois bem. Absolutamente crente de que contava com um amplo apoio de todos esses quadros de milicianos, ao mesmo tempo em que tratava de desqualificar por completo os adversários, dizendo que eles eram adeptos do comunismo e inimigos ferrenhos da família, da religião, da moral e dos bons costumes e da pátria, Jair Bolsonaro apostava cegamente que ganharia - e com folga - as eleições gerais de 2022. Só que algo correu fora do script redigido por ele e por seus comparsas: Luiz Inácio Lula da Silva derrotou o danado do Jair Bolsonaro. E o que se viu a partir dessa derrota eleitoral foi o recrudescimento das manifestações antidemocráticas dos milicianos ultradireitistas bolsonarianos, que não se conformavam com o fato de terem sido derrotados; e que, por conta disso, acamparam defronte a quartéis clamando  - alguns até ajoelhados dando uma demonstração de bestialidade, teatralidade e alucinação - para que o Exército não reconhecesse o resultado das urnas eletrônicas - urnas essas que eles diziam e dizem ser uma grande fraude - e decretasse uma tomada militar do poder republicano, passando com tanques por cima ados fundamentos da democracia; e, ao serem ignorados pelo comando militar, partiram para protagonizar o inesquecível e deplorável  acontecimento do 8 de janeiro de 2023, quando, formando uma numerosa horda, milicianos apoiadores de Jair Bolsonaro se dirigiram até Brasília e depredaram e saquearam os prédios da Praça dos Três Poderes deixando outra vez evidente que selvageria e ações criminosas são marcas características e indeléveis deles.

É preciso que se diga que, até que se chegasse aos bárbaros e criminosos acontecimentos do 8 de janeiro, quando Luiz Inácio Lula da Silva já havia sido empossado como o novo presidente da República brasileira, Jair Bolsonaro juntou-se  a uma parte de suas milícias antidemocráticas e tramou 24 horas por dia como não reconhecer o resultado da eleição presidencial de 2022 e decretar um golpe de Estado neste país. E como se soube de tudo isso? Investigações determinadas pelo STF e conduzidas pela Polícia Federal resultaram na reunião de vários elementos comprobatórios da trama golpista e na prisão de comparsas e cúmplices de Jair Bolsonaro, o que levou à coleta de depoimentos esclarecedores de grande parte do enredo que redundaria em mais um período de aprisionamento e aviltamento da democracia, caso tivesse tido êxito.

Intimados a colaborarem com as investigações que evidenciaram ainda mais periculosidade de Jair Bolsonaro e o seu desapreço pelos ideais democráticos, militares de alta patente das Forças Armadas, entre eles o general Freire Gomes, que comandou o Exército durante parte do desgoverno do dito-cujo, fizeram declarações devastadoras que puseram o ex-presidente definitivamente na cena do crime ou dos crimes. Coube ao general Freire Gomes o depoimento considerado até agora o mais expressivo e contundente entre todos os que foram ouvidos pela Polícia Federal; ele foi um dos que tiveram coragem de falar, porque uns e outros covardemente puseram o rabinho entre as pernas e mantiveram um silêncio cúmplice com o infrator.

Ontem, em mais uma demonstração do grande, exemplar e corajoso papel que vem arduamente desempenhando em defesa da democracia, o ministro Alexandre de Moraes tornou públicos os depoimentos dos militares, no que foi um dia de lavação da alma para todos aqueles que, como eu, não veem a hora de Jair Bolsonaro ir parar na cadeia, depois que forem seguidos todos os ritos legais para isso, a fim de que não se repitam as atrocidades que fizeram com Luiz Inácio Lula da Silva que, entre outros absurdos, foi conduzido coercitivamente para prestar um depoimento a mando do parcial juiz Sergio Moro que, tempos depois, seria completamente desmascarado; condução coercitiva essa desnecessária e montada para que produzisse um espetáculo midiático que teria a Rede Globo como principal exibidora, essa mesma Rede Globo que os sequazes, cúmplices e comparsas de Jair Bolsonaro passaram raivosamente a atacar, a desqualificar e a chamar de "Globo Lixo" nas voltas que o mundo deu.

Como eu disse, o depoimento do general Freire Gomes foi devastador para o golpista Jair Bolsonaro. Foi devastador e ao mesmo tempo não deixou de ser algo irônico que tenha vindo logo do Exército, a força a qual Jair Bolsonaro o tempo todo chamava de "meu Exército" e que ele tomava como grande fiadora do seu autoritário e infame projeto de poder. O general Freire Gomes de uma só tacada livrou este país de mais uma ditadura e ajudou a limpar a imagem do Exército perante a parcela da sociedade que jamais sequer simpatizou com o pensamento e os propósitos do ex-presidente; imagem essa de um Exército que Jair Bolsonaro passou quatro anos sujando e vilipendiando, colocando-o no olho do furacão do seu projeto de poder.

Como era de se prever, Jair Bolsonaro e os seus comparsas golpistas estão desmerecendo, desqualificando e fazendo de conta que não se importaram com os depoimentos dos generais Carlos Baptista Junior e Freire Gomes. Eles  estão negando o poder devastador das declarações dos generais porque é do jogo defensivo negar. Mas os elementos comprobatórios da trama golpista estão todos de posse da Polícia Federal e do STF: vídeos e relatos de reuniões, minuta do golpe, depoimentos confirmatórios...

Um resumo da fracassada opereta golpista: Jair Bolsonaro e alguns dos seus comparsas estão lascados e deverão ser presos. E, ao menos por ora, a verdade é verde-oliva.

9 de março de 2024

Personas urbanas (31)

 Por Sierra


I can buy myself flowers.

Write my name in the sand.

Talk to myself for hours

say things you don't understand [...]

Can love me better.

I can love me better, baby.   


                                                                 Flowers. Gregory Hein/Michael Ross/Miley Cyrus


Eu não faço escolha pela dor e nem pelo sofrimento. Na semana passada, num momento de mergulho do pensamento no mar interior de frustrações, eu chorei copiosamente. É muito ruim carregar frustrações consigo. Por isso é preciso, quando e sempre que for possível, recolher tais coisas que ficam mesmo que residualmente dentro de nós, colocá-las dentro de um saco e descartá-lo numa lixeira. Higiene corporal também é isso e não somente ir para debaixo de um chuveiro.

Faz pelo menos dez anos que eu ouvi um conhecido meu dizer que nós não devemos nunca e jamais fazer escolha pelo sofrimento, porque o sofrimento já vem sem o queiramos, já vem sem pedir licença para entrar na nossa vida, já vem sem receber convite para ficar bem junto de nós, já vem sem que nós precisemos pagar nada por ele, já vem sozinho e das mais variadas maneiras e formas, já vem, enfim, quando menos o esperamos.

Por mais óbvia que a não escolha pela dor e pelo sofrimento possa parecer, não é difícil encontrar por aí quem faça escolha justamente pelo sofrimento, como se a pessoa tivesse uma pré-disposição para isso. Por que escolher sofrer? Por que decidir por conta própria carregar uma cruz? Por que promover uma autoflagelação? Por que passar a vida apegado a sentimentos que só fazem deixar você triste e desconsolado? Por que se manter apegado a perguntas e a questionamentos para os quais você não encontra respostas e que, ainda por cima, martiriza você?

Ocasionais momentos de tristeza, como o que me acometeu dentro de um ônibus, quando eu saíra do trabalho e voltava para casa, na semana passada, são diferentes de um comportamento de quem fica o tempo todo remoendo uma situação e um acontecimento permanecendo num estado tristonho como se estivesse promovendo uma autopunição. Sim, eu sei, é claro que eu sei que não são poucas as pessoas que convivem diária e obrigatoriamente com indivíduos que as maltratam e que abusam delas física e psicologicamente. Eu também sei que não são poucos os indivíduos que já recorreram a tratamentos e terapias que não conseguiram livrá-los de traumas e sofrimentos indizíveis. Eu sei de tudo isso, porque também carrego comigo uma série de coisas ruins que deixaram no meu pensamento marcas indeléveis ao longo destes meus cinquenta anos de idade.

No entanto, eu não me deixo ser açoitado por essas coisas ruins que me aconteceram; e, quando algumas delas vem sorrateiramente para junto de mim, eu trato logo de espantá-las, porque não admito mais ser marionete e refém da dor e do sofrimento por escolha própria. Não admito mais isso e me recuso terminantemente a aceitar  que nós devemos sofrer para que possamos, em algum momento, desfrutarmos das maravilhas do gozo e da felicidade. Comigo não, violão. Comigo isso não funciona.

Do mesmo modo que me aborrecem tremendamente as pessoas derrotistas, eu não suporto o tipo que fica num chororô sem fim porque se mantém apegado à tristeza. Ah, seu marido arrumou outra e foi embora? Ora, trate de aprender a viver sem ele e de se apaixonar de novo, nem que seja por você mesmo, tipo Miley Cyrus cantando "Flowers" toda cheia de si, sabe? Teve uma perna amputada num grave acidente de moto? Em vez de ficar choramingando pelos cantos e dizendo que a sua vida acabou, considere seriamente a possibilidade de virar um atleta paralímpico e encher o seu peito de medalhas. Demitiram você no mês passado? Erga a cabeça e prepare-se para o desafio de sair em busca de outra oportunidade de trabalho; o que não dá é para passar o dia diante da TV ou agarrado ao telefone celular esperando que do nada , como num passe de mágica, apareça um emprego para você. Tirou nota baixa na escola? Pense que, talvez, o grande culpado por esse mau desempenho seja você mesmo e não a didática do seu professor; estude para aprender de verdade e melhore sua nota na próxima prova. Não conhece seu pai ou sua mãe biológicos ou nenhum dos dois? Criatura, você vai passar o resto dos seus dias procurando por eles é? Olhe para você. Você sobreviveu a essas ausências; você foi acolhido por alguém. Eu nunca sequer uma única vez perguntei a minha mãe quem é, que cor tem e nem qualquer outra coisa a respeito do cara que transou com ela e que a fez me colocar no mundo. Eu não quero saber dele; eu quero é saber de oferecer o melhor que eu puder  a minha mãe, que fez o que pôde para me criar. 

Ao longo de nossa existência nós iremos passar por uma série de obstáculos que exigirão de nós não somente esforço para superá-los, como também disposição para tratar de sermos resilientes a fracassos, perdas, desilusões, dores e sofrimentos. 

Caso você ainda não aprendeu, trate de aprender a fazer sempre do limão uma limonada. A vida é assim: por vezes difícil, por vezes desafiadora, por vezes desafiadora, por vezes triste e por vezes maravilhosa e gostosa como uma limonada.

2 de março de 2024

A propósito de um péssimo serviço prestado pelo Correios

Por Sierra



Foto: Arquivo do Autor
Um dos pacotes que eu tive de ir apanhar às pressas na agência do Correios da cidade onde eu moro, porque essa antes admirada empresa me cobra um preço full de frete e não entrega a encomenda em minha casa


Poucas coisas são tão frustrantes para mim do que saber que uma encomenda que eu fiz voltou pelo Correios. Você esperou pelo pacote durante vários dias, a mercadoria chegou a sua cidade e não as suas mãos e retornou ao ponto de origem do envio, porque não foi entregue na sua casa e nem retirada na agência.

Eu moro numa ilha-cidade da Região Metropolitana do Recife chamada Ilha de Itamaracá. O serviço de entrega de correspondências e encomendas prestado pela agência do Correios daqui é muito deficiente e precário. A ilha possui apenas um CEP, que é o 53900-000; e muitas, muitas ruas não são atendidas pelos carteiros. Ou seja, você paga por um serviço que não é prestado.

Vamos lá. Suponhamos que eu faça uma compra on-line numa empresa de São Paulo e você também, que mora aqui na ilha como eu mas em outro endereço. Cada um de nós pagou R$ 45,00 pelo frete. Enquanto você, que reside na Av. João Pessoa Guerra, irá receber o que foi enviado na comodidade de sua casa, eu, que paguei o mesmo valor de frete que você - eu vou repetir isso -, eu, que paguei o mesmo valor de frete que você - os R$ 45,00, lembra? - e que moro na Rua Pau-ferro, não receberei a minha encomenda em casa, porque nenhum funcionário do Correios, seja a pé, de moto ou carro, irá chamar meu nome pelo portão nem bater na minha porta. E, caso eu queira mesmo receber o que comprei, terei de driblar o horário do meu trabalho, pegar uma condução e ir até a agência retirar o meu pacote dentro do prazo muito limitado que o Correios estabelece.

Isso é justo? É claro que não é justo. Nem é justo e tampouco é correto. Eu sou mesmo levado a pensar que se trata até de uma caso em que o consumidor é lesado e enganado. Ora, se eu terei de pegar a encomenda na agência porque por algum motivo a empresa Correios não faz entrega na rua onde eu moro, qual a razão de eu não receber nem sequer um desconto no valor do frete? Isso era o mínimo que poderia e deveria ser feito, porque não faz sentido algum isso de se pagar por algo, por um serviço que inteiramente não me será oferecido e que, ainda por cima, fará com que eu reajuste a minha rotina laboral para dar um jeito de ir até a agência antes que a mercadoria seja despachada de volta. 

Como  se não bastasse cobrar o valor full do frete para áreas que antecipadamente a empresa sabe que não oferece os erviço de entrega - o Correios, até onde eu sei, dispõe de uma lista com os CEP's que possuem "restrição de entrega", restrições essas, melhor dizendo, que podem ser pelo difícil acesso às áreas, por falta de agências ou centros de distribuição próximos ou por insegurança -, o Correios tratou de dificultar - e eu diria até de penalizar - a vida dos seus clientes impondo medidas algo exageradas, como exigir uma declaração sua dizendo que Fulano de Tal está autorizado a fazer a retirada da sua encomenda em seu lugar - antes, bastava que a pessoa apresentasse  um documento pessoal e assinasse o comprovante de controle. A outra medida foi a determinação de que as encomendas que não forem retiradas na agência dentro do prazo de sete dias corridos - vou repetir isso também -, dentro do prazo de sete dias corridos - para você que porventura não entendeu, eu vou deixar mais claro: sábados, domingos e feriados entram na contagem do Correios, como se em tais dias as agências estivessem abertas e você não foi retirar a sua encomenda porque não quis - o seu pacote não estará mais disponível para você; ele será recolhido com uma rapidez impressionante, rapidez que nem o caro Sedex possui.

Muitos anos atrás o Correio era uma empresa que gozava de grande prestígio e admiração por parte do grande público que recorria aos seus serviços. Infelizmente já tem um bom tempo que a coisa mudou - e mudou para pior. Ninguém gosta de pagar caro - e nem quer - por um serviço que, além de ser caro, é precário e deficiente e, por isso mesmo, insatisfatório.

Todas a s vezes em que eu tenho de sair da minha casa para ir até a agência do Correios, daqui da ilha onde eu moro, retirar uma encomenda eu sou tomado por um sentimento que é um misto de raiva e decepção. Por essas e outras eu passei a apoiar a privatização dessa empresa. Algumas pessoas dizem que se isso acontecer o valor dos fretes subirá demais, coisa em que eu não acredito. Pior do que está não há de ficar. Pagar caro por um mau serviço por falta de opção é quase um ato de autossabotagem.

24 de fevereiro de 2024

Repúdio ao infanticídio

 Por Sierra




Imagem: Internet
Os casos de infanticídio ocorridos nos últimos dias na Ilha de Itamaracá tanto quanto expuseram as disputas de tráfico de drogas, deixaram ver que a banalidade do mal tira a vida até de seres inocentes e indefesos



Não há ódio. Não há força bruta. Não há revolta. Não há disputa. Não há inconformidade. Não há incompreensão. Não há calamidade. Não há dificuldade. Não há beligerância. Não há nada que faça com que eu aceite como coisa natural ou fatalidade os casos de assassinatos de crianças. Acredito que a maioria das pessoas pensa assim, porque todos nós enxergamos as crianças como seres indefesos contra os muitos males que existem no mundo, males no mais das vezes criados e propagados por nós, adultos; e reconhecemos que é preciso protegê-las de todas as formas que forem possíveis.

A fala algo equivocada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a respeito da ação que Israel vem há semanas mantendo na Faixa de Gaza lançou o olhar de parte da imprensa para uma questão crucial dessa guerra: a morte de milhares de pessoas, em geral, e de milhares de crianças, em particular, que vêm sofrendo também com toda sorte de restrições impostas pelo conflito bélico, como falta de água e de comida, atendimento médico e deslocamentos para lugares outros longe de suas casas que, em muitos casos, não existem mais. Espíritos de porco da imprensa deram destaque unicamente ao equívoco do presidente, que comparou o que os israelenses estão fazendo com os palestinos com o Holocausto por eles sofrido a mando do nazista Adolf Hitler. Não, não há comparação. O Holocausto, que dizimou milhões de judeus e outros indivíduos tidos como inferiores e indesejáveis, é um dos capítulos mais infelizes e tenebrosos da História da humanidade. Não, não é um Holocausto o que Israel está promovendo na Palestina; mas é também algo profundamente cruel e desumano, de modo que a fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve sim um teor em parte equivocado, só em parte, porque na sua essência ele foi preciso ao destacar a brutalidade que tem vitimado tantas vidas de inocentes sob a justificativa de que é preciso caçar e exterminar os terroristas do Hamas que praticaram atrocidades contra israelenses. O Holocausto não fez desenvolver um sentido amplo de humanidade entre os judeus e sim a busca permanente de uma autodefesa  e ataque aos seus tantos inimigos que existem por aí.

Não é de hoje que os casos de maus tratos, abandono, abusos sexuais e infanticídio aparecem aqui e alhures nas crônicas policiais. O que aconteceu foi que como advento e a popularização das chamadas redes sociais, esses crimes ficaram mais evidentes porque textos e imagens passaram a chegar a um número de pessoas muito maior do que no tempo das mídias tradicionais. A instantaneidade, a rápida divulgação e o amplo alcance das redes sociais nos pôs em contato com flagrantes de crimes que muitas vezes se espalham antes mesmo de chegar aos veículos de imprensa.

Na Ilha de Itamaracá, a ilha-cidade da Região Metropolitana do Recife, onde eu moro, em menos de uma semana e no mesmo bairro, a Biquinha, ocorreram dois casos de infanticídio com igual modus operandi: homens invadiram duas casas e dispararam vários tiros: no sábado, dia 17, morreu um bebê de apenas nove meses de vida; e na noite de anteontem a vítima foi um garoto de 10 anos de idade. Os episódios deixaram ao menos parte da população assustada, porque os casos de assassinato na ilha-cidade têm sido frequentes e, ainda nesta semana que acaba hoje, circularam boatos de um toque de recolher no bairro Forte Orange, com direito a vídeo de um suposto delinquente que fala sem mostrar a cara, circulando pelo WhatsApp. Um terror. Um terror.

Nada justifica o assassinato de crianças. Os episódios de infanticídio ocorridos aqui na Ilha de Itamaracá revelaram quão desprotegidos estamos todos nós; desprotegidos e à mercê de criminosos que, impiedosos e cruéis, não fazem distinção entre os alvos que eles querem atingir e eliminar.

Dia após dia a Ilha de Itamaracá vem perdendo o status e o prestígio de outrora, tempo em que figurava como um lugar que era uma espécie de paraíso na Terra, com suas praias de águas quentes sempre convidativas para banhos demorados. Nos dias que correm - e  isso não é de hoje, tem um bom tempo já - ao fechamento de hotéis e pousadas, ao desmatamento de nacos da Mata Atlântica principalmente para dar lugar à construção de casas, ao desordenamento urbano e à sensação de abandono e inércia do poder público se juntou o poder corrosivo da bandidagem que controla o tráfico de drogas. E tudo isso é muito lamentável.

Não permitamos que a nossa quase indiferença ao enorme número de assassinatos que ocorrem diariamente aqui em Pernambuco faça com que encaremos o infanticídio como mais uma dessas ocorrências de mortes que parecem não nos dizer respeito. Não, repudiemos isso de modo veemente. Crianças são a nossa chance de redenção; elas são uma possibilidade de que, como cidadãs adultas, elas deem certo, já que nós fracassamos em muitas frentes.

17 de fevereiro de 2024

Carnaval, sim! Apocalipse, não!

 Por Sierra


                                                                  Especialmente para André Araújo, o Bebê, folião que já se fantasiou até de Smurf e que aniversaria hoje


Fotos: Arquivo do Autor
Seguindo para o Largo do Amparo a ordem é tocar o sino dos cornos. Só toca quem já levou gaia, visse? Agora tu não vais fazer de conta que não levasses, por favor, que mentir é feio


No Carnaval deste ano eu fui inteiramente contagiado pelo samba enredo da Escola Mocidade Independente de Padre Miguel. "Prepare o seu coração/ Vem aí a escola da emoção/ Vem aí...". Esta introdução era e é por si mesma uma alegria. Aí vinha um José Paulo Sierra - um Sierra, um xará - esfuziante e vibrante comandando  o canto e chamando a bateria de Mestre Dudu. Foi maravilhoso isso. "Meu caju, meu cajueiro/ Pede um cheiro que eu dou...". Cantei a valer cheio de entusiasmo. A Mocidade não ganhou o desfile, mas ganhou, informalmente, escolhida pelo grande público, a certeza de que apresentou, na quarentona Marquês de Sapucaí, um samba enredo que caiu na boca do povo como há muito não se via. Foi arretado demais isso.


Primeiro dia no Largo do Amparo: alegria, alegria. Oba!





A princípio eu estava borocoxô e sem disposição para sair, pegar os busões da vida e ir curtir o Carnaval nas ladeiras de Olinda e no Bairro do Recife. No domingo eu fiquei em casa chocando os ovos ao mesmo tempo em que dava conta da feitura de um texto e acompanhava a folia pela TV e pelo telefone celular. Mas no dia seguinte. Ah, meu nego, ah, minha nega,  no dia seguinte não teve borocoxô certo: eu almocei, me aprontei e caí no meio do mundo, porque sete vidas quem tem é gato.



Eu no meio do Bloco Quase Que Não Sai na Rua do Amparo





Peguei dois ônibus para chegar a Olinda já decidido a só ficar por ali mesmo e não ir ao Recife. Não tive problemas com os busões. Pelo contrário. Foi tudo tranquilo. Não peguei nem ônibus cheio.

Muita gente subindo e descendo ladeira, porque Seu Rei mandou dizer que quem não gosta do Carnaval de Olinda vai para outro lugar...


... Não foi, Dona Florinda?


Como eu tenho feito nos últimos anos, quando vou sozinho para o Carnaval de Olinda, eu  adentro o sítio histórico e o espaço da folia pelo Largo do Amparo. Olinda possui vários pontos  marcantes no que diz respeito aos festejos de Momo - Quatro Cantos, Rua de São Bento, Rua do Amparo, etc. - e o Largo do Amparo é certamente um deles, porque, além de ser um espaço que fica pertinho da sede do Clube Carnavalesco Vassourinhas, é o lugar por onde passam muitos blocos e troças, o Homem da Meia Noite e outros gigantes da festa.


Com a turma do Grupo Grheia: pense num divertimento bom da gota!








Seguindo em direção ao Largo do Amparo, na Rua Nossa Senhora de Guadalupe,  eu toquei o sino dos que já levaram gaia na vida. Ri o riso bom dos que entram logo no clima da irreverência. E me detive por um tempo ali, no adro da Igreja de Nossa Senhora do Amparo, cantando e dançando junto a uma pequena orquestra que estava animando o povo.

Daí a pouco eu segui o Bloco Quase Que Não Sai, que tomou a direção da Rua do Amparo. Pense numa coisa boa que é se deixar levar pela alegria e pela euforia estando onde se quer e como se quer.



Meu segundo dia no Carnaval de Olinda: de novo começando pelo Largo do Amparo









Dali eu me dirigi até o Alto da Sé. E, junto ao Observatório Astronômico, eu me deparei com uma turma danada que cantava e dançava na maior zorra, acompanhada por uma plateia para lá de entusiasmada à qual eu tratei logo de me integrar, que eu não sou besta. Era o Grupo Grheia (  Grupo Recreativo Hedonista Irreverente de Amigos Percussivos Alto da Sé), que estava  ali. Gente, como foi divertido cantar e dançar celebrando Reginaldo Rossi e outros cantores marcantes do brega . E teve mais do que isso, visse? Lá pelas tantas nós entoamos até um "Sem anistia!" para lembrar que nós esperamos que a Justiça não dê nenhuma colher de chá ao traste do Jair Bolsonaro.

Mantendo o pique e caminhando por entre milhares de foliões, eu fui curtir uma parte do show do Siba, no Polo Erasto Vasconcelos, na Praça do Carmo. E assim eu preenchi o meu primeiro dia de aproveitamento do Carnaval.

No dia seguinte, na chamada Terça-feira Gorda, lá fui eu novamente me acabar no sobe e desce das ladeiras de Olinda. Ufa! O negócio é bom, mas cansa que só, visse?! Cansa e mesmo assim quem gosta do negócio não quer arredar o pé da agitação e nem sair do meio da multidão.

Ainda mais do que no dia anterior, eu me demorei no Largo no Amparo. Estava tão bom ali. A mesma orquestra da segunda-feira marcou presença e pôs todo mundo que a cercou para cantar e dançar. Mascarados. Caras limpas. Homem. Mulher. Uns já turbinados, cheios de álcool. Outros fumando um baseadozinho. Nada como o prazer, não é? Nada mesmo.


Na concentração à espera da saída da Troça Carnavalesca Ceroula: foi bom que só!









Andando que só a má notícia eu tomei o rumo da Praça do Jacaré, passando pelo Alto da Sé e descendo pela Ladeira de São Francisco para ficar na concentração, esperando pela saída da Troça Carnavalesca Ceroula. Uma multidão acompanhou a troça que celebrou esse mestre de todos nós que é o educador Paulo Freire.

Depois disso, eu fui prestigiar a muitíssimo boa e empolgante apresentação da banda Mestre Ambrósio, um dos grandes nomes da cena e do Movimento Manguebeat, na Praça do Carmo. Foi muito massa.

E assim eu cumpri a minha breve agenda de folião e súdito do rei Momo, tendo consciência de que o bom, o muito bom de toda e qualquer festa é a festa interior que ela provoca dentro da gente, pondo em ebulição uma variedade de sensações e sentimentos.

Enquanto isso, lá na Bahia, Baby do Brasil resolveu bancar a profetisa e anunciar o fim do mundo. Poxa, Baby do Brasil querida, apocalipse numa hora dessa não dá, mulher. Deixa esse apocalipse para lá porque o bom da vida pode começar e recomeçar, é só querer. Aproveita, visse?!

10 de fevereiro de 2024

Não hesite: escolha sempre a alegria

 Por Sierra



Foto: Arquivo do Autor
O Recife pegando fogo durante o desfile do Galo Madrugada neste sábado. Com sol, com chuva, com temperatura nas alturas ninguém deixou a folia de rua que continua sendo um grande atrativo para milhões de pessoas por este Brasil afora


Entra ano e sai ano e a magia do Carnaval permanece acesa como se fosse uma chama eterna que milhões de pessoas cuidam de aumentar a potência para que ela ilumine e intensifique a irreverência, a greia e principalmente a alegria.

Não há festa popular no Brasil que provoque tanta euforia e tanta animação como o danado do Carnaval. E ela mexe tanto com tanta gente que começa semanas antes do início estabelecido no calendário, porque, para aqueles que gostam do acontecimento, há um forte desejo de querer aumentá-lo quanto for possível.

Outra vez eu estive trabalhando durante o desfile do Galo da Madrugada, do pernambucaníssimo Galo da Madrugada, que invade diversas ruas dos bairros de São José e Santo Antônio, na área central do Recife. E pelos logradouros por que passei eu pude ver nos rostos de muitos foliões aquele brilho indescritível que a satisfação costuma produzir em quem a sente. De lá para cá e de cá para lá vinham e iam pessoas fantasiadas, grupos diversos superanimados, indivíduos entoando com fôlego a canção que estava sendo cantada pelo artista em cima do trio elétrico. E isso me encheu de um entusiasmo que vocês nem imaginam.

De fato, não é preciso ir a bailes nem acompanhar trios elétricos ou ir para a frente de um palco armado em praça pública para vivenciar o Carnaval. A magia e a alegria das folias de Momo podem ser experimentadas onde quer que nós estejamos, desde que queiramos e nos dispusemos para isso. Pode ser na vizinhança de casa ou dentro da própria casa curtindo um som, dançando, se divertindo e mesmo acompanhando os festejos pela televisão, porque, caso goste mesmo do Carnaval, cada um o vivencia e o exalta como pode e quer.

Não acredito que alguém possa ficar indiferente ao Carnaval - nem os que o repudiam ficam imunes a ele, porque o Carnaval é quase onipresente neste país. De modo que, mesmo falas como as que eu ouvi hoje no Recife, falas de uma kardecista, que disse que a escultura do Galo da Madrugada, montada na Ponte Duarte Coelho, está este ano com um símbolo do anticristo, e que o Homem da Meia Noite é um demônio, a festa acontece contagiando e envolvendo multidões que não dão ouvidos aos seus detratores e estraga prazeres como a tal mulher.

Onde uns e outros enxergam permissividade, outros veem irreverência. Onde uns e outros enxergam evocações demoníacas, outros veem culto às ancestralidades de quem as exibe. Onde uns e outros enxergam desperdício de tempo e dinheiro, outros veem um investimento justo e preciso na sua satisfação pessoal. Onde uns e outros enxergam promiscuidade e devassidão, outros veem a plenitude do existir em comunhão com seus prazeres. Onde uns e outros enxergam uma afronta aos valores morais e familiares, uns veem o extravasar da imensa vontade de fazer a vida vibrar na maior potência que for possível enquanto durar a folia carnavalesca.

No dia em que os detratores do Carnaval se derem conta do muito do bom que perderam da folia e resolverem pôr o Bloco dos Arrependidos na rua, eles constatarão, no meio da massa, que o verdadeiro inferno que existe é aquele repleto de gente ruim, antipática, falso moralista, intolerante, hipócrita, preconceituosa e contrária à alegria, ao prazer e à satisfação alheia do qual eles faziam parte. Poucas coisas são tão desagradáveis nesta vida do que pessoas que ficam o tempo todo dizendo que nós vamos para o inferno. Essas criaturas não caem na real e não percebem que elas é que são o nosso inferno.

Na vizinhança da minha casa, na Ilha de Itamaracá, o clima de festa está em alta voltagem. O pessoal não cede espaço para o desânimo e nem para a tristeza. A alegria toma um energético e outros estimulantes e aditivos para se esbaldar até a Quarta-feira de Cinzas chegar. Ligam os aparelhos de som, organizam bloquinhos e saem por aqui defendendo a dimensão do prazer que querem alcançar.

Todos os anos as cenas de euforia se repetem e deixam sempre um gostinho de quero mais, porque, caso isso fosse possível e o nosso organismo suportasse tanta dose de alegria e adrenalina, atravessaríamos todo um mês curtindo a folia momesca dizendo a quem quisesse ouvir que viver sem alegria é outra coisa e não propriamente vida, porque é nas estâncias da alegria que todos e cada um de nós quer realmente viver. Sim, é claro que a alegria não reside unicamente no acontecimento Carnaval. É óbvio que não. Tem gente que encontra uma alegria tamanha se isolando completamente da folia carnavalesca e fazendo de conta que ela não existe. Ora, cada um é cada um. A minha escolha tem sido pelo Carnaval. E quem quiser que busque outra alternativa para a obtenção de alegria, só não hesite e nem abra mão dela - e nem condene a minha.

3 de fevereiro de 2024

Sobre pessoas que não valem a pena

 Por Sierra

Imagem: Internet
Não percamos o nosso tempo com pessoas que não valem a pena. Viver é muito bom desde que nos mantenhamos longe de gente ruim.


Ao longo dessa minha caminhada eu conheci várias pessoas que diziam a frase "Não se deve confiar em ninguém" como se fosse um mantra, como se fosse uma sentença irrefutável da qual elas nunca pudessem abrir mão. Cada vez que eu ouvia - e ouço - isso eu dizia - e digo - assim de mim para mim: "Será que existe alguém que consegue viver desse jeito, sem confiar em ninguém?".

Francamente eu não acredito nisso. E ainda há uns e outros que dizem "confiar desconfiando", o que é outra bobagem, porque parece um princípio de quem nunca e em ocasião alguma baixa a guarda e se mantém sempre alerta. E quem é que vive dessa forma, me digam?

Eu costumo dizer que os espíritos de porco, os maus-caracteres, os desleais, os falsários, os enganadores, os mentirosos, os aproveitadores, os escrotos, os caluniadores, os difamadores e os malignos estão em todos os lugares, em maior ou menor número, aprontando das suas e buscando escapar são e salvos e completamente ilesos de tudo o que fazem e aprontam. A minha aposta é que uma hora a casa desse pessoal cai, porque em algum momento o muito esperto há de esbarrar com alguém cuja esperteza é maior do que a dele.

Cruzar com espécimes desse naipe é inevitável. E, por mais que nós recorramos aos maiores meios de prevenção, não temos como efetivamente nos assegurar que escaparemos de todo dessa gente. Conheço um sujeito que sempre se julgou ser esperto até dizer basta, esboçando aquela empáfia própria de quem se sente superior e blindado contra os espertinhos; e não é que ele foi derrubado com o famigerado golpe "boa noite, Cinderela"? Ele caiu nesse golpe e voltou para casa no outro dia murcho, apagado, grogue e sem o porta-cédulas e o telefone celular.

Eu falei aqui de golpistas e de espertinhos parecendo até que são só esses indivíduos que nós devemos manter longe do nosso convívio. Não, existem outras criaturas que não valem a pena dar atenção e nem firmar com elas laços de simpatia e de solidariedade que dirá de amizade.

Às vezes nós demoramos a nos dar conta que estamos sobrando numa determinada situação; que estamos fazendo um esforço enorme que fica somente nos desgastando sem nos levar a lugar algum; que estamos nos dando demais sem receber sequer a atenção devida; que estamos oferecendo todo apoio a uma pessoa e ela não está nem aí para nós; que estamos absolutamente certos que o caminho era esse e seguimos sem avistar o que procurávamos; que acreditamos verdadeiramente que estamos sendo levados a sério por alguém e esse alguém nos descarta e nos abandona na primeira oportunidade que tem.

É preciso que admitamos que as desilusões não são de todo ruins. Particularmente eu prefiro a desilusão breve e/ou imediata à fantasia do falso bem demorado, que nos absorve e nos envolve completamente e depois nos golpeia e nos joga na lona.

O pior e mais ruinoso comportamento é o de quem vê logo de cara que o fulano ou a  fulana não presta e, portanto, não merece confiança, e, ainda assim, quer ir em frente e pagar para ver o que acontece, num exercício digno de um masoquismo imperdoável. E, sinceramente, agir dessa maneira, como eu agi mais de uma vez, é autosabotagem, é falta de autocuidado e desprezo pelo instinto de autopreservação.

Às vezes eu me pego remoendo acontecimentos que vivenciei e que foram para mim muito danosos afetivamente falando. Eu sei que recordar tais ocorrências é quase que sofrer de novo, o que é terrível, porque nós não devemos fazer escolha pelo sofrimento. Eu venho fazendo um esforço para ter um maior controle sobre os mecanismos das recordações ruins, sabendo, no entanto, que eu não posso e nem devo apagá-las de todo da minha memória, porque esses arquivos pessoais são como que aprendizados para que se tente evitar que os acontecimentos ruins não se repitam.

Dois parágrafos atrás eu disse o que eu considero o pior comportamento que podemos manter no trato com pessoas que não valem a pena. Pois bem, sabem qual é o melhor comportamento que se pode manter na interação com esse tipo de gente? É deixá-las pensar que estão por cima da carne seca e senhoras da situação, acreditando que encontraram mais um trouxa que elas vão largar por aí sem nem olhar para trás e, de repente, nós vamos lá e as desmascaramos e as derrubamos de seus pedestais antes que elas nos deem um bote como serpentes. Aqui na minha terra existe uma expressão quem tem a ver com isso também; ela diz assim: "Enquanto tu trazias os cajus, eu já vinha com as castanhas".

Não percamos o nosso tempo com pessoas que não valem a pena. Viver é muito bom desde que nos mantenhamos longe de gente ruim.

27 de janeiro de 2024

Crítica, autocrítica e pressão algorítmica: Manu Gavassi e a afirmação do eu como bússola e medida do fazer artístico

 Por Sierra


Imagem: Divulgação
Espécie de manifesto estético, Programa de Proteção à Carreira Artística é um tapa na cara de muita gente por aí que se apresenta como artista - e não só no cenário musical



Não é sempre. Na verdade, são poucas as vezes em que o algoritmo da internet encaminha para mim algo que realmente me interessa. A coisa funciona mais ou menos assim: você fez uma busca no YouTube, por exemplo, de uma música ou de um canal do qual ouviu falar; a partir disso, o sistema entende e/ou supõe que você ficou permanentemente interessado naquilo e lhe enviará diariamente um vídeo do dito canal ou outra música do mesmo artista que você buscara. É uma importunação isso. Mas, como eu disse, às vezes o sistema acerta: o fundamento dele é justamente esse: insistir, insistir até que você aceite alguma coisa dentre as tantas que ele recomendou e enviou para você.

No mês passado o YouTube me encaminhou um vídeo, um vídeo que eu considerei ser um curta-metragem. Tratou-se do incisivo e muito pertinente Programa de Proteção à Carreira Artística, roteirizado e estrelado pela cantora e atriz Manu Gavassi. Eu gostei tanto do que vi, que assisti a ele mais de uma vez a fim de ir depurando a minha apreciação do produto e absorver minúcias do que ele tratava e atacava.

Antes de eu me deter na avaliação do Programa de Proteção à Carreira Artística, eu quero e preciso fazer uma digressão e dizer o porquê de a Manu Gavassi ter me levado a escrever este artigo de hoje. Em primeiro lugar eu devo-lhes dizer que eu comecei a prestar atenção nessa artista na época em que ela participou do Big Borther Brasil, em 2020. Tempos depois ela lançou dois videoclipes que me agradaram bastante tanto pela estética visual como pela desenvoltura e postura da Manu Gavassi, com sua voz delicada e bem colocada, e pelas músicas em si. Os clipes em questão foram Bossa nossa e Gracinha. Foram esses trabalhos que me levaram a perceber que a jovem Manu Gavassi era e é uma cantora e uma artista que estava, naquele momento, contrariando, por assim dizer, o cenário musical brasileiro no qual jovens cantoras como ela - e também cantores - se encontravam empenhadas em entregar ao público músicas irrelevantes e descartáveis enquanto faziam uso de roupas mínimas que realçassem as suas bundas para que elas, rebolativas, pudessem descer até o chão exibindo seus "dotes artísticos". E, vendo  aqueles clipes, eu me perguntava: "Até quando será que essa garota vai aguentar manter essa postura e esse conceito musical e artístico numa realidade que abomina algo que seja mais elaborado e que não caiba nos reels e nem nos TikToks da vida?". Bom, a resposta a essa minha indagação chegou de modo impactante no mês passado com o lançamento do Programa de Proteção à Carreira Artística.

Não sei se você que está me lendo agora conhece e/ou já ouviu falar na Manu Gavassi e se  já assistiu ao vídeo Programa de Proteção à Carreira Artística. E, caso você não o tenha visto, procure vê-lo, porque não é apenas a respeito de estética musical que ele trata - mesmo que fosse só sobre isso ele seria muito relevante e interessante -; o videoclipe põe em debate e em questão o papel do artista e do fazer artístico numa realidade que praticamente determina o que é ser artista e qual tipo de arte esse artista deve produzir para que ele possa ser pelo menos visto no mundo virtual. Com seu clipe, Manu Gavassi trouxe à baila também a velha discussão do papel da arte e do artista numa sociedade; e aqueles conceitos de "arte engajada" e de "arte pela arte". Ela, além disso, me fez recordar o conceito de elucidação do filósofo Cornelius Castoriadis, que é o trabalho de "pensar o que se faz e saber o que se pensa".

Eu componho. E, como compositor, eu nutro um grande interesse pela produção musical alheia. A música é algo que muito me fascina. Música, como eu disse noutra ocasião, é um alimento, é uma necessidade vital para mim. Como todas as pessoas que gostam de música - sabe-se que o incensado poeta João Cabral de Melo Neto não gostava de música -, eu tenho minhas preferências tanto de estilos como de substância literal, digamos assim, porque eu aprecio fundamentalmente a música que é cantada; de modo que eu me importo com o que vai dito ao ritmo da melodia. E há muita coisa no mercado musical que, mesmo que eu aceite que tal produto musical existe porque há um público que o consome, para mim ele não passa de lixo cultural, de coisas inteiramente irrelevantes que em nada contribuem para o engrandecimento do cancioneiro nacional.

É claro que eu gosto de músicas alegres e solares; dessas que nos animam e nos jogam para cima. Mas eu não sou do tipo que enxerga a vida como se ela fosse uma incessante e festiva balada. Não, a vida não é só isso. A vida tem muitas coisas ruins. Eu aprecio também - e muito - músicas que me fazem pensar; que me ensinam algo;  que são como que crônicas de um dado acontecimento; músicas que denunciam dramas sociais; e de músicas que falam de reflexões existenciais. Eu não sou adepto de arte alienada. Daí por que, por exemplo, eu não consigo nutrir a menor simpatia por aquilo que eu chamo de "putaria music", que são músicas que só falam em sexo, bebedeiras intermináveis e farras sem fim: não me convidem para festas com essa trilha sonora porque eu não vou. 

Não concordo com a máxima que diz que "gosto não se discute"; tanto gosto se discute que é justamente por isso que existe a crítica; e o exercício crítico, o papel do crítico - e tem gente que odeia os críticos - é nos mostrar nuances que muitas vezes nos escapam na apreciação de determinadas coisas, principalmente quando somos consumidores passivos e acríticos, indivíduos que consomem um produto sem questionar e sem avaliar nada dele. 

A mim me parece que, no geral, aqui no Brasil, a figura do crítico não é benquista. Uns e outros só aceitam a crítica e a avaliação se elas forem positivas - eu nunca esqueci a celeuma que levou Zeca Camargo a ser processado pela família do cantor Cristiano Araújo; e, mais recentemente, os ataques sofridos pela antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz, porque não admitiram que uma "branca" escrevesse o que ela escreveu sobre a cantora "negra" Beyoncé: se Lilia fosse "negra" será que o que ela escreveu sobre a artista norte-americana não seria atacado? Duvido muito disso -; se as críticas são negativas, o crítico é chamado de elitista, de inimigo da pluralidade, de defensor de grupinhos, de irrelevante, de zé-ninguém e de frustrado - frustrado é o ataque considerado mais pesado.

Enquanto eu ia acompanhando o desenrolar de Programa de Proteção à Carreira Artística, no qual Manu Gavassi atua como ela mesma e como uma implacável e autoritária funcionária da empresa que "protege" artistas, inevitavelmente foram chegando à minha mente várias figurinhas e personagens tidos como comercialmente relevantes - acentue-se a palavra comercialmente - no atual cenário musical brasileiro, que eu vejo como inteiramente irrelevantes e descartáveis artisticamente falando. Eu recordei também o caso do processo já citado do Zeca Camargo e o desabafo feito pelo cantor Johnny Hooker, em 2022, ocasião em que ele lamentou o fato de sua música autoral não estar sendo muito procurada nas plataformas digitais. E eu  pensei no quanto Manu Gavassi foi corajosa ao roteirizar - a mim me parece que ela também vai longe como roteirista - e protagonizar um vídeo no qual fez críticas tão ácidas e cruas e tão pertinentes à realidade musical ora dominante, ao mesmo tempo em que fez uma autocrítica e expôs seus questionamentos como artista e como cantora e compositora que já pensou em desistir da carreira. O vídeo é um potente tapa na cara de uns e outros "artistas" que brotam por aí como ervas daninhas, que não possuem lastro artístico nenhum e que resolvem ser atrizes e cantoras  de uma hora para outra  por acreditarem que a exposição que tiveram num programa de TV e o número de seguidores nas redes sociais que eles passaram a possuir por causa disso, legitimam a sua "carreira artística".

Sabiamente Manu Gavassi não deu nomes aos bois no clipe Programa de Proteção à Carreira Artística, porque, além de se livrar de processos, ela certamente inferiu que, qualquer pessoa conhecedora do atual panorama musical brasileiro, inevitavelmente deduziria para quem ela estava apontando e/ou descrevendo. E, para que não houvesse dúvida de que Programa de Proteção à Carreira Artística não estreara somente como uma espécie de manifesto estético, ela nos brindou com mais alguns trabalhos muito bem pensados e elaborados: os clipes Sexo, poder e arte, Pronta pra desagradar e 31.

Não acredito que Programa de Proteção à Carreira Artística impactará de alguma forma e interferirá o mínimo que seja no modus operandi da fabricação de cantores e cantoras neste país. Nós continuaremos vendo surgir por aí "irrelevâncias importantes" que permanecerão mostrando a bunda - pelo menos enquanto eles e elas forem jovens e bonitos - como complementos e atrativos para suas músicas e "carreiras artísticas" e entoando canções com letras cheias de nada. Seja como for, me anima e me conforta saber que existem por aí também artistas genuínos e talentosos, como Manu Gavassi, que não são reféns do algoritmo e nem da pressão do tempo, que pensam e questionam o seu fazer artístico e que não estão dispostos a ficar com a bunda empinada e rebolativa para subir nos Spotifis da vida.